Manolo e Maria, os peculiares habitantes de Cousa Vã
João Rebocho Pais estreia-se no romance com «O Intrínseco de
Manolo» (o titulo original é em minúsculas). Estreia-se? Pois, se esta é
uma estreia não sei o que se seguirá. Diz que nunca imaginou escrever
uma história para tanta gente. Diz. Mas seria bom que o autor não se
ficasse por aqui, porque talento nato é inclementemente simplificador
para classificar este escritor. A chancela é da Teorema.
Mas neste contexto árido, afigura-se um Manolo e uma Maria. Apaixonaram-se ainda novos e foi amor até ao fim. Manolo diferencia-se de todos. É introspectivo. Gosta de deitar-se à sombra de uma azinheira secular, a sua maior confidente, e com ela desabafa sobre tudo. Ela curva-se para o ouvir e abraça-o nos dias em que o sente mais triste. Diz-se na aldeia, onde muito se fala sobre a vida alheia, que Manolo é traído pela mulher, aquela que tanto ama e que acredita cheia de virtude. Manolo é dono de Maria, pertencente a Maria. Questiona-se frequentemente de onde terá vindo um milagre assim. Mas a dúvida instala-se por entre os aldeões porque Maria desaparece às sextas-feiras, sob o pretexto de dar um pulinho à vizinha aldeia espanhola para ver as modas. Mas quando regressa a casa parece que a moda lhe passou ao lado. E assim, Manolo passa a ser alvo de chacota de todos. Chamam-lhe o adornado. Mas esta figura tão peculiar não se importa. Só tem olhos para o seu amor, aquela que deixa a casa sempre a cheirar bem, que lhe faz os pratos favoritos, que nunca se cansa de lhe conceder um agrado. Acresce o facto de a chama entre os dois nunca se ter apagado. Aliás, o narrador deste romance faz questão de realçar que quando as portas do quarto se fecham não há testemunhas para contar o que se passa entre as quatro paredes, mas suspeita-se, a avaliar pelo desejo que sentem um pelo outro, pelo suor que ainda lhes escorre corpo abaixo quando o deixam.
Mas os aldeões, medíocres, preferem expurgar as suas vidas de mentira camuflada, cheias de improbabilidades, e deliciarem-se a fantasiar com as imprudências de Maria, acrescentando pormenores de fazer corar qualquer um. A mesma gente que se vai perdendo por entre escuros caminhos, vencendo a fraqueza do corpo e esquecendo a história de coisas da sua alma. Como o Tonho, que cada vez mais sente a necessidade de sentir e comportar-se como uma fêmea, como a sua mulher Albertina e a sua genitália devoradora, o Arnaldo (dono da tasca) e o seu desconchavo comercial feito de farsas e esconderijos, a Marília nos seus labirintos de descaminho da realidade, o Beto e a sua ambição sem regras nem respeito pelos mandamentos de Deus e ainda Idalina e a sua imundice sem lei nem fim.
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A todos eles João Rebocho Pais dedica um capítulo, mas o mais surreal e escatológico é o de Idalina, uma mulher que deixa a roupa amontoada pelo chão na casa de banho, que permanece enrolada em lençóis sujos após o pequeno-almoço, depois de banquetear-se com salsichas fritas, queijo e restos de torresmos da véspera. Ali fica, ajeitando-se e roçando-se por entre cuecas e soutiens usados e sujos. Até que ao meio-dia de um sábado lembra-se do compromisso assumido na paróquia, o de ajudar nas festas em honra da padroeira da terra, cozinhando bolos e pastéis, que serão distribuídos pelas mesas de oferendas. O pároco ficara de ir buscar a oferenda pela tarde. Idalina arrasta-se da cama, dirige-se à cozinha imunda, cheia de gordura e nódoas, bicharada, bolor e um desafiar de prazos fora de validade. Sem tempo para a higiene, e com as mesmas mãos sapudas com que se coçara, ao que se junta o pastoso cabelo, começa a amassar, deixando em tudo o rasto do seu sebo. A gorda Idalina lambe tachos e colheres, besunta-se, afocinha e lambe-se receita adentro, numa orgia de sensações que o desconchavo da sujidade desde sempre lhe trouxera. Num repente, Idalina descose-se num peido gigantesco, uma bufa quase imoral, brutal no seu fedor e consistência. Num assomo de alienada descontracção, lembra-se de catalogar a intensidade da descarga, passando a mão roupa adentro, recolhendo-a salpicada de uma viscosidade acastanhada, que sem demora e por inerência acrescenta à receita em curso, a pasta que viria a tornar-se o recheio dos pastelinhos. Inacreditável a composição desta figura.
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Cousa Vã é uma terra de privadas mentiras e ausentes soluções. Mas Manolo e Maria terão a oportunidade de mostrar, de forma anónima, o quão íntegros são, seguindo os ensinamentos dos mais velhos e daqueles que já foram. Vão tentar trazer de volta a Cousa Vã perdida. Conseguirão eles? Só lendo. Memorável este romance de estreia de João Rebocho Pais.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=583939
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