Manolo e Maria, os peculiares habitantes de Cousa Vã
João Rebocho Pais estreia-se no romance com «O Intrínseco de
Manolo» (o titulo original é em minúsculas). Estreia-se? Pois, se esta é
uma estreia não sei o que se seguirá. Diz que nunca imaginou escrever
uma história para tanta gente. Diz. Mas seria bom que o autor não se
ficasse por aqui, porque talento nato é inclementemente simplificador
para classificar este escritor. A chancela é da Teorema.
Mas os aldeões, medíocres, preferem expurgar as suas vidas de mentira camuflada, cheias de improbabilidades, e deliciarem-se a fantasiar com as imprudências de Maria, acrescentando pormenores de fazer corar qualquer um. A mesma gente que se vai perdendo por entre escuros caminhos, vencendo a fraqueza do corpo e esquecendo a história de coisas da sua alma. Como o Tonho, que cada vez mais sente a necessidade de sentir e comportar-se como uma fêmea, como a sua mulher Albertina e a sua genitália devoradora, o Arnaldo (dono da tasca) e o seu desconchavo comercial feito de farsas e esconderijos, a Marília nos seus labirintos de descaminho da realidade, o Beto e a sua ambição sem regras nem respeito pelos mandamentos de Deus e ainda Idalina e a sua imundice sem lei nem fim.
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A todos eles João Rebocho Pais dedica um capítulo, mas o mais surreal e escatológico é o de Idalina, uma mulher que deixa a roupa amontoada pelo chão na casa de banho, que permanece enrolada em lençóis sujos após o pequeno-almoço, depois de banquetear-se com salsichas fritas, queijo e restos de torresmos da véspera. Ali fica, ajeitando-se e roçando-se por entre cuecas e soutiens usados e sujos. Até que ao meio-dia de um sábado lembra-se do compromisso assumido na paróquia, o de ajudar nas festas em honra da padroeira da terra, cozinhando bolos e pastéis, que serão distribuídos pelas mesas de oferendas. O pároco ficara de ir buscar a oferenda pela tarde. Idalina arrasta-se da cama, dirige-se à cozinha imunda, cheia de gordura e nódoas, bicharada, bolor e um desafiar de prazos fora de validade. Sem tempo para a higiene, e com as mesmas mãos sapudas com que se coçara, ao que se junta o pastoso cabelo, começa a amassar, deixando em tudo o rasto do seu sebo. A gorda Idalina lambe tachos e colheres, besunta-se, afocinha e lambe-se receita adentro, numa orgia de sensações que o desconchavo da sujidade desde sempre lhe trouxera. Num repente, Idalina descose-se num peido gigantesco, uma bufa quase imoral, brutal no seu fedor e consistência. Num assomo de alienada descontracção, lembra-se de catalogar a intensidade da descarga, passando a mão roupa adentro, recolhendo-a salpicada de uma viscosidade acastanhada, que sem demora e por inerência acrescenta à receita em curso, a pasta que viria a tornar-se o recheio dos pastelinhos. Inacreditável a composição desta figura.
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Cousa Vã é uma terra de privadas mentiras e ausentes soluções. Mas Manolo e Maria terão a oportunidade de mostrar, de forma anónima, o quão íntegros são, seguindo os ensinamentos dos mais velhos e daqueles que já foram. Vão tentar trazer de volta a Cousa Vã perdida. Conseguirão eles? Só lendo. Memorável este romance de estreia de João Rebocho Pais.
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